13.12.12

História da carochina ou história pra boi dormir ou história de um nordestino ou melhor, história dos adolescentes desse país.

Texto produzido para fins acadêmicos (organização da atenção à saúde aos adolescentes), com inspiração declarada no A Hora da Estrela de Clarice.



Essa é uma história comum para a cultura brasileira, quiçá nordestina. Antes de apresentar o herói da vez, devo me apresentar, aliás, sou o narrador, o membro inteligente da mente do escritor. Pois bem, sou o oráculo da vida desse moço que será descrita nas próximas linhas. Mas, de antemão, defendo-me por qualquer realidade desagradável que ele venha sofrer e de algum desconforto que eu venha te provocar. Acostume-se, essa pode ser sua realidade, do seu vizinho, daquele rapaz da esquina que você mal cumprimenta. Essa é a realidade de muitos jovens espalhados por esse “brasilzão”. Agora que já sabem da minha impiedade, devem conhecer o idealista que todo jovem é, mas, novamente alerto você leitor, esse não é qualquer indivíduo. Esse é o Zé.

Zé é um cabra curioso, o moço de boa estirpe, um rapazote que as moças costumam babar ao passar. Entretanto, Zé não se sente assim e milhares de dúvidas rondam sua cabeça, mas não vê forma para respondê-las. Matuta no seu quarto a quem ele poderia descarregar essa bateria de perguntas, não acha solução. Ele enumera as possibilidades, mas logo em seguida as descarta pelas dificuldades. Pega uma folha do seu caderno mastigado pelo tempo e escreve com o lápis roído (abro observação, porque todo lápis de adolescente, principalmente os homens, tem que levar um resto de mastigação no seu fundo?):
“Escola.” Pensa, pensa, depois fala: “ - Não! Meus colegas acabariam sabendo das minhas perguntas. Aqueles professores parecem mais narradores das vidas do corredor que qualquer outra coisa.”

Em tempo, informo você que me lê. Zé é inteligente, inteligente pra caramba. Principalmente comparado com seus colegas de sala e seus amigos de rua. Só que Zé tem uma vergooonha, que só Deus na causa. Entretanto, de vez em quando uma coragem lhe surge no peito e o repentino momento acontece. Quase sempre é uma burrada, mas tem hora que ele acerta o alvo. Voltemos.

“Pais.” Silêncio. “- Não! Meus pais vão achar que sou doido e que tô doente.”

“Amigos.” “- Nem pensar!”

“Avô.” Silencia novamente. “Meu avô tá muito caduco pra essas coisas, melhor não.”

É então que lhe passa pela cabeça, numa coisa de fração de milésimos, a lembrança de alguém falar sobre o posto do bairro. Como se a luz da ideia aparecesse sobre sua cabeça, ele rabisca em letras garrafais:

“VOU NO POSTO!”

Aqui estou eu novamente interrompendo a história, mas é preciso.

Zé é bonito, inteligente, corajoso como já disse. E acrescento, é de uma inocência que ninguém acredita se eu apenas falar assim, mas veja...

Ele com pressa, só que demonstrando tranquilidade, chegou da escola, tomou banho, almoçou e esperou o horário para ir ao posto. Tem que ser disfarçado, porque senão todo mundo ia perguntar o que ele tem, até porque ir ao posto é sinal de doença. O que de certo modo ele acha que tá, mas é melhor manter as coisas ocultas.

Imagino agora Zé com alguma fama, tipo: Zé da bicheira ou Zé pinga-pinga. Olha que desagradável...

Outras informações importantes: Zé tem 15 anos, é classe médio-baixa e mora na periferia. Voltemos.

Deu 14h, Zé partiu. Sem direito a #partiu no facebook. Sigilo de estado. Mas esse pobre adolescente não sabia o que o esperava naquele recinto. É como eu disse: pura inocência. Acompanhe os fatos que sucederam e veja como as coisas funcionam.

Logo ao chegar viu, distribuídos em pouco espaço, vários profissionais encostados sem atividades para fazer, mas escutou ao longe: - “Ixe”! Lá vem mais um marginal... Ele se assusta com a frase, até olha para trás, mas talvez tenha sido imaginação sua. Para em frente ao balcão de recepção e espera pela boa vontade da recepcionista que nada fazia. Tímido como é e educado (é, parece incomum hoje em dia, jovens terem paciência para esperar alguma coisa, eu sei, mas...), esperou até ela parar de não fazer algo e ir atendê-lo.

- Sim.

- Oi. Boa tarde. Gostaria de...

- Quer pegar camisinha? Calma aí que falo com a enfermeira pra trazer aqui. (Olhando para baixo, para uma revista de fofoca, dessas que contribuem muito para o intelecto do ser).

- Não... Eu queria que ela me...

- Te o que meu filho? (Nesse momento ela já aparenta nervosismo e o encara).

- Consultasse.

A recepcionista continua encarando sua cara com espinha e começa a preencher uma ficha de admissão. Ela o manda esperar um pouco nas cadeiras vazias logo à frente. E sai.

Vou te ambientar: USF (Unidade de Saúde da Família) com aquela aparência de final de gestão do mandato municipal, com as paredes descascando, as cadeiras maltrapilhas, as pessoas cansadas e o ar de saúde muito mais distante do que o ar de doença.

Depois de uns bons minutos (quando digo bom, refiro-me a vinte minutos, quem sabe) encarando a recepcionista enfezada, ele escuta seu nome: - José! Pronunciado por uma voz feminina também enfezada.

Educado, calmo e com muita paciência levanta da cadeira enferrujada e entra na sala da enfermeira. A partir daí a conversa se resume em poucas frases (e faço questão de deixar claro que era sua primeira vez numa unidade de saúde).

- Sim. O que você tem?

- Oi. Boa tarde. Eu tenho... É... Como posso dizer?!

- Você quer camisinha? Não... Porque se fosse já tinha pegado lá na recepção. O que é então? Seja direto, tenho um monte de coisa pra fazer.

- Apareceram no meu pênis umas manchas vermelhas e...

- Vixe menino! Aí não resolvo não. Não usou camisinha, né? Vou fazer o que posso aqui pra te marcar com a médica.

- Mas você não vai nem olhar? (coragem repentina).

- Eu?! Não! Não precisa, já sei o que é!

Zé fica desacreditado com aquela situação, abobalhado, na verdade, mas talvez seja assim mesmo que as coisas funcionam, né? Rapidamente pensa: Não, não é assim que funciona. A televisão e internet tá aí pra isso.

- Como você sabe se nem olhou? (coragem duradoura, agora).

- Claro que sei, estudei quatro anos pra saber dessas coisas. Você ainda tá no ensino médio, e olhe lá!

Zé passa de abobalhado para furioso. Levanta da sala, sem nem ao menos pegar a folha de consulta para a médica, nem dar o boa tarde de tchau. Zé, frustrado com aquela experiência, volta para casa, angustiado, com mais perguntas na cabeça do que antes. Sua mãe pergunta o porquê de tanto aborrecimento, mas ele não confia iniciar uma história sobre sua ida ao posto de saúde. Intrigado com aquele tratamento que recebeu e como foi o descaso, pôs-se de frente a um computador e começou a pesquisar sobre saúde, lhe saltando aos olhos um emaranhado de informação que o fascinou:

 “Saúde do adolescente? Tem que ter ética, privacidade, sigilo. (...) Serviços de saúde adequados, profissionais adequados. (...) Acolhimento em todo o momento do atendimento. (...) Respeito às características próprias de cada indivíduo, sejam elas culturais, socioeconômicas... (...) Participação ativa dos adolescentes na construção de seu próprio cuidar e no cuidar da comunidade. (...) Adolescentes são capazes de tomarem decisões. Autonomia. (...) Profissionais que os tratem de forma acolhedora, que passem confiança, tranquilidade e conhecimento. (...) Atividades devem ser feitas pela Equipe de Saúde da Família (ESF) para chamar atenção dos adolescentes. (...) Atendimento acolhedor para diversos tipos de situações, como em casos de exploração sexual, violência, profissionais do sexo ou envolvidos em outras formas de trabalho perigoso, infectados por HIV... (...) Humanizar as relações entre a ESF e os usuários. (...) Avaliação completa pelo Enfermeiro, partindo de características pessoais a condições socioeconômicas. (...) Equipe de saúde permanentemente educada. (...) Materiais e equipamentos suficientes e necessários para um atendimento adequado. (...) Atividades da Unidade de Saúde em conjunto com a Escola. (...) Gincanas, palestras, discussões, visitas domiciliares, captação de adolescentes, parceria entre instituições, estratégias específicas.

E foram outras inúmeras informações que ele conseguiu naquela tarde e noite... Deitou-se na cama com a cabeça cheia de curiosidades e propostas. Ideias que pulsavam na mente. Comparou o atendimento que recebeu naquele dia e como a coisa deveria ser. A célula da vontade de mudança junto com a da coragem percorria o seu sangue. Tomava naquele momento uma decisão: iria buscar a mudança! Iria honrar o título revolucionário do adolescente! Estava esquematizado que a mudança partiria de dentro, da base... Seriam eles a colocar a saúde e educação no eixo. Cansado de tanto pensar, dorme, e dorme profundamente.

Agora eu, narrador, observo ele dormir e vejo como em um dia fui. Um revolucionário utópico que defendia todas as causas e seres... Mas fui vencido pelo sistema e já estou cansado disso também. Mas não me resta o que fazer, estou a mercê desse escritor que me molda e ele, senhora ou senhor que me lê, pode ser vencido por você que ainda tem o grito da esperança pulsando no peito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE ATENÇÃO À SAÚDE. Saúde integral de adolescentes e jovens: orientações para a organização de serviços de saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005. 44p.: il. – (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23. ed. Rio de Janeiro: Francisco alves, 1995. 106p.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. A Saúde de Adolescentes e Jovens - uma metodologia de auto-aprendizagem para equipes de atenção básica de saúde. Módulo básico. Série F. Comunicação e Educação em Saúde; n. 17 Brasília – DF 2002.
SÃO PAULO (CIDADE). SECRETARIA DA SAÚDE. Manual de atenção à saúde do adolescente/ Secretaria da Saúde. Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde-CODEPPS. São Paulo: SMS, 2006. 328p.




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