29.10.08

Overdose de Machado

[Rapaz envolvido por livros e folhas soltas sentado numa mesa no palco]

Um rapaz que está estudando sobre Machado de Assis para concluir uma tese ler compulsivamente vários textos sobre o tema, começa a enlouquecer de tanto estudar...

[A mãe entra e fica no canto do palco]

MÃE - Meu filho pára de estudar! O juízo é mais fino que uma folha de papel.
RAPAZ - Não posso minha mãe! Tenho que concluir essa tese.
MÃE - Descansa pelo menos um minutinho...
RAPAZ - Meu tempo é muito curto. E pára de me interromper!

O rapaz continua lendo loucamente até começar a dizer decoradamente e rápido, datas e fragmentos da vida de Assis.

RAPAZ - 1861: Publicou desencantos 1867.1868; conhece Castro Alves 1869; Casou-se 1899, 1908 morreu!

Começa a abrir os livros de Machado e vai lendo aleatoriamente citando os nomes dos personagens desses.

[Abre o livro Quincas Borba]

QUINCAS BORBA - Tudo que está cá fora corresponde ao que sinto cá dentro; vou morrer meu caro Rubião... Não gesticules, vou morrer. E que é morrer, para ficares assim espantado?
RUBIÃO - Sei, sei que você tem umas filosofias... Mas falemos do jantar; que há de ser hoje?
[pausa]
RUBIÃO - Que é? Que quer?
QUINCAS BORBA - Nada. Umas filosofias! Com que desdém me diz isto! Repete, onda, quero ouvir outra vez. Umas filosofias!

[Abre o livro Helena]

HELENA - Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochê?
ESTÁCIO - Não?
HELENA - Não, senhor; fiz um furto.
ESTÁCIO - Um furto?
HELENA - Fui procurar um livro na sua estante.
ESTÁCIO - E que livro foi?
HELENA – Um romance.
ESTÁCIO - Paulo e Virgínia?
HELENA - Maion Lescout.
ESTÁCIO - Oh! Esse livro...

[Abre o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas]

VIRGÍLIA - Sim, é amanhã. Você vai a bordo?
BRÁS CUBAS - Está doida? É impossível.
VIRGÍLIA - Então, adeus!
BRÁS CUBAS - Adeus!
VIRGÍLIA - Não se esqueça de Dona Plácida. Vá vê-la algumas vezes. Coitada! Foi ontem despedir-se de nós; chorou muito, disse que eu não a veria mais... É uma boa criatura, não é?
BRÁS CUBAS - Certamente.
VIRGÍLIA - Se tivermos de escrever, ela receberá as cartas. Agora até daqui a...
BRÁS CUBAS - Talvez dois anos?
VIRGÍLIA - Qual! Ele diz que é só até fazer as eleições.
BRÁS CUBAS - Sim? Então até breve. Olhe que estão olhando para nós.
VIRGÍLIA - Quem?
BRÁS CUBAS - Ali do sofá separemo-nos.
VIRGÍLIA - Custa-me muito.
BRÁS CUBAS - Mas é preciso; adeus, Virgília!
VIRGÍLIA - Até breve. Adeus!

[Abre o livro Dom Casmurro]

CAPITU - Você indo, esquece-me inteiramente.
BENTINHO - Nunca!
CAPITU - Esquece. A Europa, dizem que é tão linda, e a Itália principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D. Glória está morta para que você saia do seminário.
BENTINHO - Sim, mas julga-se presa pela promessa.
CAPITU - Jura que ao fim de seis meses estará de volta.
BENTINHO - Juro!
CAPITU - Por Deus?
BENTINHO - Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.
CAPITU - Mas se o Papa não tiver ainda soltado você?
BENTINHO - Mando dizer isso mesmo!
CAPITU – E se você mentir?

[Ao final pega o livro “O Alienista” e abre citando o nome de Simão Bacamarte, mas antes do personagem entrar]

RAPAZ - Não! Você não precisa nem entrar... Você é louco. Não sou nem um pouco...
CAPITU - Nós só somos personagens. Estamos na tua cabeça. [Chegando perto dele e batendo na sua cabeça]
RAPAZ - Vocês não estão só na minha cabeça. Todos estão vendo! Só se todos forem doidos. [Vira para o público] - Vocês são loucos?

Depois de vários livros abertos grita:

RAPAZ - Quietos! Essas histórias estão vagas. Vou dar um rumo na vida de vocês [direcionando para os personagens que mantém uma cara de assustado] - Vamos lá!
Venha aqui Capitu! Quero que você seja par de Brás...
CAPITU - Não serei par de um defunto.
RAPAZ - Como assim!?
BENTINHO - Ela não me trairá.
RAPAZ - Libertem-se dos seus livros.
BRÁS CUBAS - Não posso. Essa foi a minha única vida.
HELENA - Não quero me libertar do que Machado escreveu. Estou muito confortável daquele jeito.
QUINCAS - Você é um louco. Não sabemos fazer mais nada.
RAPAZ - Incapazes! Vocês precisam de Machado até para pensar?
RUBIÃO - Não! Somos criações suas!
RAPAZ - Burros! Saiam daqui!

[Termina a tentativa de criar uma história e sai fechando os livros]

RAPAZ - Basta! Basta! Vocês são ruins... Vocês não são bons personagens.

[Ele olha para trás e encontra Machado de Assis em pé]

RAPAZ - Quem és tu?
MACHADO DE ASSIS - Eu!? Machado... Não me conheces? Claro que sim! Eu sai da sua cabeça!
RAPAZ - Estás errado... Mas bem que tive uma idéia de um tu assim.
M.A. - Então... Surgir dessa parte do teu cérebro.
RAPAZ - Quer dizer que...
M.A. - Você me conhece muito bem. Só estou escondido na tua cabeça...
RAPAZ - Preciso te conhecer melhor. Preciso que você venha mais claramente na minha mente.
M.A. - Então me assista!

[Toma forma de narrador na cena. O rapaz senta no chão e assiste a história. Outra pessoa entra no palco e interpreta toda a história, que o primeiro Machado conta].

M.A. - Nasci no Morro do Livramento... É! Não me livrei de muita coisa. Tudo aconteceu no dia 21 de junho... A partir daí minha vida tomou um rumo bem trágico.
Perdi minha mãe e minha irmã inexplicavelmente. Meu pai me deu uma madrasta e isso foi assustador. [Entram duas pessoas interpretando Machado quando novo e sua madrasta] Ele morreu. E eu fiquei com Maria Inês...
Depois disso o que vem não é tão importante. Só me acarretou de histórias bobas.
‘Ta bom! Comecei a vender doce para ajudar em casa... Porém eu sou gago

[Quem interpreta começa a vender doces gagamente].

M.A. - É! Fui Coroinha... [pausa] E foi bem depois, que consegui entrar na marmota fluminense, jornal da época. Lembro do poema “Ela”, o primeiro que publiquei. Mas sofri muito. Não vou me fazer de coitadinho aqui.
Nas passagens pela vida fui discriminado por ser mulato, o que na época era “ruim” para um artista. Eu era pobre... E isso só dificultava minha carreira. Porem, modéstia a parte, eu sou muito talentoso. Foi com meu talento que consegui vencer. Mas ainda vou chegar na vitória.
Eu nasci com um problema que eu devo tomar cuidado. Sou epiléptico e meus ataques não olhavam os lugares. Era no trabalho, nas festas, eu batia os dentes e tremia tudo.
Depois de um tempo, cheguei à primeira seção da ABL. E no meu discurso, eu novamente... [Machado interpretado inicia um discurso gago, mas logo pára]

[Machado sai inexplicavelmente do palco enquanto o rapaz faz o público aplaudi-lo].

RAPAZ - Não! Volta Machado! Para onde tu foste? MACHADO!!! Não é possível, Machado ter saído assim...
PESSOAS NA PLATÉIA - Louco!

[Vira para o público].

RAPAZ - Vocês também viram, não é? Não sou louco... Não foi só o meu pensamento.
PESSOAS NA PLATÉIA - Você está realmente doido. Eu não vi nada.

[Sai do palco, direcionando-se para o público]

PESSOAS NA PLATÉIA - Você não vai conseguir nada assim...
RAPAZ - Como não vou conseguir?
PESSOAS NA PLATEIA - Você nem se reconhece!
RAPAZ - Claro que sei quem sou! Sou Simão Bacamarte. Não sou Bentinho... Sou Escobar, sou Brás. Posso ser todos! Até Machado!
PESSOAS NA PLATEIA - Está provado que és louco!

[Dá um surto e vai pegando o braço do povo e chamando-os pelo nome dos personagens]

RAPAZ - Capitu! Por que não conversas comigo? Fala Quincas! Cadê o Rubião? Marcela, por que demorastes tanto?? VIRGÍLIA! VIRGÍLIA!

[Entram dois homens que seguram o rapaz que tenta fugir levando-o para fora de cena (na ilusão de uma prisão num hospício). Rapaz continua gritando o nome de Machado]

M.A. - Está provado que por mais que tentem, nunca conseguirão decifrar os mistérios do bruxo das palavras! EU, MACHADO DE ASSIS...

‘Tá aí gente a peça que prometi no post “Virgília!”. Fui eu que escrevi, por isso deve conter erros ortográficos e de concordâncias. Mas valeu a pena fazê-la.
REFERÊNCIAS: Machado de Assis: Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba, O Alienista (Papéis Avulsos).
Ah! E Joseph Climber (haha).
E é verdade... Quem deu o título foi minha sala.

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